sexta-feira, 25 de julho de 2014

Os autores clássicos da sociologia no ensino superior - THE CLASSICAL AUTHORS OF SOCIOLOGY IN HIGHER EDUCATION

O artigo abaixo discute a sociologia clássica, o que é um clássico, quais os tipos de pensadores e obras clássicas, quais são os clássicos da sociologia, qual a importância do seu ensino, etc.


Os autores clássicos da sociologia no ensino superior*

 Nildo Viana


O presente artigo visa refletir sobre o ensino dos autores clássicos na educação superior, mais especificamente os clássicos da sociologia nos cursos de ciências sociais.  Um conjunto de questões deve ser feitas nesse caso: o que são os clássicos? Como eles são definidos e por quem? Qual sua importância? Como isso ocorre no caso da sociologia? Como ensinar os clássicos na sociologia no ensino superior? Qual sua relevância e necessidade? Estas e outras questões remetem a diversas outras e por isso buscaremos tratar essa questão em dois momentos: num primeiro momento vamos discutir a questão dos clássicos em geral e, num segundo momento, vamos discutir a questão do ensino dos clássicos da sociologia no ensino superior.

Por que ler os clássicos

O título deste item é também o título do livro de Ítalo Calvino (2007). Ele, em tal obra, analisa diversas obras clássicas da literatura universal, e onde desfilam autores como Galileu, Flaubert, Tolstoi, Dickens, Stendhal e vários outros. A sua discussão tem relação com a nossa, mas mantém uma certa distância devido diferença de foco e perspectiva. Contudo, alguns elementos em sua definição de obras clássicas serão úteis em nossa análise. Mas antes de colocar o motivo para ler os clássicos, é importante esclarecer alguns elementos, tal como o que é um clássico? Quem define uma obra ou autor como clássico? Qual sua importância? Este último elemento já adentra na questão do motivo para ler os clássicos.

O primeiro ponto a se discutir é: o que é um clássico? Não vamos apresentar diversas definições e concepções a respeito disso, mas tão-somente colocar nossa posição, o que não nos impede de remeter, em muitos casos, a outros autores. No sentido geral, um clássico é uma obra ou autor cujo conteúdo é uma fonte inesgotada de inspiração. Claro que este é o sentido mais amplo que podemos fornecer ao termo. Vale tanto para obras como autores, para obras literárias ou teóricas. A Bíblia é uma obra clássica do pensamento cristão. Contudo, ela já não é clássica para o pensamento marxista. Já o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, é uma obra clássica da política, mas não da religião. A obra de Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, é uma obra clássica da literatura brasileira, mas não da italiana. Isso quer dizer que o caráter de clássico de uma obra varia de acordo com o contexto e a existência de uma consciência e reconhecimento social das mesmas.

O nosso objetivo aqui não é analisar os clássicos em geral e sim uma forma específica de sua manifestação. Por isso, a nossa definição inicial é generalizante. É preciso especificar o que é um clássico no âmbito do pensamento teórico, científico, filosófico, pois nesses casos eles se assemelham. Nesse âmbito, um clássico é uma fonte inspiradora inesgotada para análise e explicação da realidade. Trata-se de um saber fundador, original, que abre novas perspectivas e horizontes teórico-metodológicos. Esse é o caso de Marx, Weber e Durkheim na sociologia; bem como o de Freud na psicanálise e Saussure na linguística. Eles são autores clássicos por serem fundadores, originais, e por isso são fontes inspiradoras. Nesse sentido, Calvino está correto em dizer que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (2007, p. 11).

Nesse sentido, um clássico é uma obra passada, mas sempre atual, ou seja, é datado e histórico e, ao mesmo tempo, devido sua profundidade, mantém atualidade. Segundo Calvino, “é clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo” (2007, p. 15). Se ele não dissesse nada sobre a atualidade, teria interesse puramente histórico, seria ultrapassado. E aí podemos distinguir entre os clássicos universais e os clássicos particulares. Os clássicos universais são aqueles cuja contribuição é tão fundamental e permanente que é o verdadeiro clássico, manifestação universal e não algo que é construído social e historicamente, sendo passageiro. Os clássicos particulares são justamente os passageiros, construções sociais e históricas produzidas por determinações da época, dos interesses dominantes, do poder financeiro, etc. Obviamente que dificilmente haverá consenso sobre quem é clássico universal e quem é particular. Para um marxista, Marx é um clássico universal e Weber é um clássico particular, enquanto que para um weberiano, Weber é que é o clássico universal e Marx um clássico particular. Isso ocorre devido ao fato de que nossas concepções são históricas, datadas, e sofrem “múltiplas determinações”. O que interessa é entender que, superando as determinações que ao invés de reconhecer a verdade a ofuscam, podemos tentar descobrir quem é clássico universal. Por enquanto, apenas colocaremos isso e deixaremos à consciência de cada um decidir quem considera clássico universal ou não.

Mas o nosso foco aqui não são obras e sim autores. Sem dúvida, as obras clássicas tendem a ser dos autores clássicos, mas existem, dependendo do algo ao que a obra é clássica, exceções. É possível dizer que Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim é uma obra clássica da sociologia ou que Sociologia dos Partidos Políticos é uma obra clássica sobre partidos e nenhum dos dois autores é clássico da sociologia. Um autor clássico (universal ou particular) produziu obras que são uma fonte inspiradora inesgotada devido sua profundidade e originalidade, fundando uma nova forma de ver o mundo ou a sociedade, abrindo novas perspectivas e horizontes metodológicos e teóricos, como já dissemos. Entrariam nessa categoria aqueles que Kneller qualificou de espíritos inventivos, originais, que produzem uma hipótese após outra, e defendem com confiança (até agressividade) as ideias produzidas, o que é necessário devido à oposição que normalmente ideias originais encontram[1]. Ele se distingue do saber estruturante e inovador, embora esse possa ser clássico em sentido relativo e também do saber vulgar ou ritual, bem como do saber científico vulgar e ritual (Viana, 2010).

O saber clássico é o que gera uma nova concepção de mundo, ciência particular, teoria de algum fenômeno social ou da totalidade da sociedade. Ele produz novos horizontes teóricos ou científicos (Viana, 2010). Louis Althusser colocou isso bem ao afirmar que Marx descortinou o “continente história” e Freud o “continente do inconsciente” (Althusser, 1991; Viana, 2010). Os autores clássicos são pensadores que, descobrem continentes. O saber inovador ou estruturante é o que gera novas teses, conceitos, integrados ao saber clássico já existente, tal como no caso de Korsch no caso do marxismo ou de Melanie Klein no caso do freudismo (Viana, 2010). É um tipo de saber que inova apesar de sua filiação a um saber clássico, seja aplicando as teorias a casos concretos, seja desenvolvendo novas teorias sobre aspectos não trabalhados anteriormente no pensamento clássico, etc. Aqui se incluiria o que Kneller chama de “empiristas” e também o que denomina “intermediários”, mais teóricos[2].

Contudo, para definir se uma obra, autor ou pensamento é clássico não é suficiente sua profundidade e veracidade. Se um pensador excepcional (alguns diriam um “gênio”) produzisse uma obra também excepcional formando uma concepção rica e importante para a compreensão da realidade, isso não faria dele um clássico se ele não publicasse suas obras, se não fosse conhecido por ninguém, ou, ainda, fosse simplesmente menosprezado pelos demais (seja seus pares, a imprensa, a população em geral, etc.). Aí entra o outro elemento que complexifica a questão do que é ou não clássico. Além de ideias profundas, originais e inovadoras, para ser clássico é necessário o reconhecimento social. Nesse sentido, um pensador se torna clássico não somente quando produz ideias sólidas e inovadoras, que abrem um novo campo de pesquisa e se torna base para futuras análises, reflexões e pesquisas, mas também quando recebe reconhecimento social, seja por expressar necessidades sociais (gerais ou particulares, ou seja, da sociedade como um todo, de uma classe social, de um grupo social, de uma instituição, etc.)[3]. A produção social dos clássicos apresenta a primazia das necessidades sociais. É por isso que não são apenas os clássicos universais que são clássicos, mas também os clássicos particulares, pois estes satisfazem as necessidades de determinadas épocas, grupos, etc. Ou seja, um clássico é produto das necessidades intelectuais e das necessidades sociais, sendo que esta última tem a primazia e é por isso que se confundem clássicos universais com particulares e surgem “falsos clássicos”. Estes últimos são tentativas artificiais de tentar tornar um autor, obra, etc. em clássico, mas sem expressar o que realmente significa o clássico, sejam as necessidades intelectuais que satisfaz ou as necessidades sociais, ou em alguns casos a ambos. Vamos voltar a isso quando discutirmos os clássicos da sociologia.

Por fim, resta saber qual é a importância de ler os clássicos. Claro que a importância de ler um clássico universal – no caso específico do pensamento teórico – é por demais evidente: é um meio de acesso à compreensão e explicação da realidade que, sem ele, ficaria muito mais difícil e trabalhoso, pois seria necessário reinventar a roda para depois poder usá-la num contexto em que ela já existe. É por isso que um clássico universal, por mais que o poder, grupos, etc., tentem silenciá-lo, ele, depois de ser reconhecido como clássico, dificilmente pode ser esquecido ou silenciado totalmente. Sempre ressurgirá, como fênix, das cinzas.

Contudo, mesmo no sentido mais lato do termo clássico, incluindo os clássicos particulares, é fundamental sua leitura, estudo, pesquisa. A leitura dos clássicos é necessária devido a: a) ela é condição de possibilidade de produzir novo saber (original ou meramente inovador); sem Marx não existiriam os marxistas, sem Freud não existiriam os freudianos, etc.; sem a crítica e superação – que pressupõe domínio de suas ideias – não se produz novos clássicos. b) ela é necessária para o domínio da história do pensamento e da cultura ou de determinada ciência, disciplina, concepção (quando se trata de um saber clássico relativo a uma determinada ciência particular, etc.). Um linguista que não conhece Saussure, um sociólogo que não conhece Marx e Weber, possui uma formação limitada, incompleta, deficiente. c) ela manifesta determinadas necessidades acadêmicas, profissionais, disciplinares. Formar em curso superior, provas, exames, concursos, ser professor, dominar o conteúdo de sua disciplina, etc. Essa necessidade mais prosaica de leitura dos clássicos é mais pragmática e está relacionada diretamente como a questão da profissão e do ensino e aprendizagem. d) ela também permite ampliar a erudição, o que possibilita desenvolver o saber. Os clássicos da sociologia, por exemplo, eram todos eruditos (com suas variações, obviamente), pois o saber original pressupõe certa erudição e a leitura de eruditos permite se aproximar deles. e) ela é necessária para a compreensão e explicação da realidade, caso se trate de um clássico universal. Além destas razões, seria possível elencar diversos outros motivos para a leitura dos clássicos, tal como o desenvolvimento intelectual próprio, a satisfação de ter acesso a autores que refletiram sobre a realidade ao invés de simplesmente descrevê-la, etc.

Os Clássicos da Sociologia e o Ensino Superior

A superação de uma mera formação ritual pressupõe um domínio do campo de estudo e/ou da disciplina para o qual o indivíduo esteja adquirindo sua titulação. A formação de um economista, geógrafo, linguista, para citar poucos exemplos, significa que o indivíduo depois de terminado seu curso, domine sua ciência particular, o que significa conhecer os autores e obras clássicas desta disciplina, bem como ter noção dos precursores, fundadores, história da disciplina, discussões contemporâneas principais, aspectos metodológicos, principais teorias. Um curso que não proporcione isso como exigência básica (o que pressupõe sua presença na grade curricular, profissionais aptos para o seu ensino, incentivo à pesquisa e elementos extra sala de aula, etc.) é um curso deficiente e que se dedica a uma formação deficiente e meramente ritual. Para haver uma formação estrutural são necessários os elementos acima elencados, e, dentre eles, é fundamental o ensino dos clássicos. Sem dúvida, alguns podem repetir a ladainha que certamente leram de segunda mão, através de Alexander (1999) ou Cohn (1977), segundo a qual, “a ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”, pronunciada por Alfred North Whitehead. Whitehead é um filósofo da ciência com foco na matemática e por isso não serve de exemplo para as ciências humanas, além do equívoco da afirmação no próprio campo das ciências humanas. Poincaré, por sua vez, que afirmou que a sociologia possui muitos métodos e poucos resultados. Além de Poincaré não servir de referência para as ciências humanas devido sua pouca compreensão das mesmas e ser questionável inclusive no âmbito das ciências naturais, seria bom perguntar quem seria ele e Whitehead sem os seus predecessores, a quem eles menosprezam e que basta ler suas biografias para ver a importância. Gabriel Cohn coloca uma posição mais adequada ao citar Alvin Gouldner, que é a seguinte: “para se esquecer algo é preciso primeiro tê-lo conhecido. Uma ciência que ignora seus fundadores é incapaz de saber quanto caminhou e em que direção. Ela também está perdida” (Apud. Cohn, 1977, p. 2). Quanto à afirmação de Poincaré, Cohn afirma que a resposta de Gouldner é suficiente, apesar dela ser repetida até os dias de hoje, “por figuras de importância científica bem menos formidável e, portanto, menos qualificadas para se darem o luxo de dizer tolices” (Cohn, 1977, p. 2).

As razões aludidas por Gouldner são boas, mas tocam em apenas um aspecto, que é o conhecimento da história da disciplina. Esse aspecto histórico é fundamental, contudo, ele não abarca os outros aspectos discutidos anteriormente sobre o saber clássico. As obras dos clássicos – graças ao reconhecimento social – perduram, os contemporâneos passam. No caso da sociologia, as obras de Marx, Weber e Durkheim continuam sendo referências e fontes de inspiração, enquanto que as obras de outros que lhes sucederam, ou foram superadas ou tiveram influência limitada. O funcionalismo de Parsons e Merton, além de sua área de influência ser mais limitada em termos regionais, teve vigência nos anos 1950 e logo foram esquecidos e objetos de crítica e superação. O mesmo vale para o estruturalismo nos anos 1960. As modas passam, os clássicos ficam. E isso é mais claro ainda devido ao fato de que os contemporâneos bebem na fonte dos clássicos. Bourdieu faz uma síntese entre os três clássicos e basta ver as obras de Giddens e Bauman para ver sua incessante discussão e retomada dos clássicos, sem falar da Escola de Frankfurt e a presença de Marx ou o funcionalismo e sua referência a Durkheim e Weber, entre milhares de outros exemplos.

Os clássicos são fundamentais para todo estudante de sociologia pelos motivos já elencados e não apenas para reproduzir o que eles disseram – pois o fato de serem clássicos não quer dizer “inquestionáveis” ou que tudo que disseram seja verdade (mesmo porque, principalmente no caso da sociologia, em muitos pontos eles são antagônicos). Contudo, os grandes sociólogos contemporâneos são anões se comparados com os gigantes que são os clássicos. Da mesma forma, como bem disse Lucien Goldmann (1978), se os anões subirem nas costas dos gigantes, irão ver mais longe do que eles. Algo que seria impossível se os anões fizerem de conta que não existem gigantes.

Após a constatação da necessidade fundamental de ensino dos clássicos, então devemos discutir como fazê-lo. A grade curricular deve ter pelo menos uma disciplina dedicada aos clássicos (embora devesse ser mais de uma e isso pode ser resolvido com disciplinas optativas sobre cada um dos clássicos, o que ampliaria a formação do aluno e permitiria ao professor com formação incipiente reler e pesquisar e se aperfeiçoar e para o professor já com domínio, a possibilidade de reler, aprofundar e socializar o seu saber). A disciplina teoria sociológica clássica – independente do nome que se lhe dê – assume o papel de disciplina principal nos cursos de sociologia (graduação e pós-graduação). Logo, o seu ensino deve sofrer um processo de reflexão mais profunda.

O primeiro ponto a se destacar é que o objetivo central do estudo dos autores clássicos e sociologia, como em todos os outros casos, é possibilitar sua compreensão por parte do aluno. Para conseguir tal compreensão é necessário realizar uma reconstituição da experiência intelectual do autor e perceber que o seu pensamento forma uma totalidade. Para o aluno formar sua consciência do pensamento e da produção intelectual de um autor clássico, esses dois elementos são fundamentais. Isso vale para um aluno de graduação, pois é inadmissível que um aluno termine um curso de sociologia e se torne sociólogo sem a compreensão dos clássicos.

A reconstituição da experiência intelectual do autor, bem como a percepção da totalidade do seu pensamento pressupõe romper com determinados problemas no ensino dos clássicos. Um destes problemas é levar o aluno a ler apenas trechos ou capítulos de obras ou utilizar apenas comentaristas. A totalidade do pensamento de um autor não pode ser percebida com leituras limitadas, parciais de trechos ou capítulos de obras. É preciso, no mínimo, a leitura das obras fundamentais de cada autor, de forma completa. O argumento de que (no caso da graduação) se trata de “calouros”, é sem sentido, pois se tratamos os outros como inferiores e infantis, não contribuímos para que eles saiam deste estado. Ao invés de formar “eternos calouros” é melhor começar a formar sociólogos ou cientistas sociais. Por conseguinte, não se deve ler apenas o primeiro capítulo de As Regras do Método Sociológico, de Durkheim e sim o livro inteiro, inclusive porque tem discussões sobre a questão da causalidade e explicação nas ciências sociais que alguns sociólogos, profissionais, ministram em disciplina de metodologia apelando para autores das ciências naturais e demonstrando um olímpico desconhecimento que tal discussão está presente nos clássicos e tendo como objeto não a natureza e sim a sociedade. Os comentaristas podem ser utilizados, mas com cautela e senso crítico, que, por sua vez, deve ser avisado aos alunos. Ao lado de livros inteiros e capítulos de outros, um ou outro comentarista pode ser utilizado, mas desde que não seja dos mais vulgares e problemáticos, manuais superficiais e que transbordam um total desconhecimento e apenas repete lugares comuns. É também necessário alertar o aluno que tal comentarista, assim como qualquer outro, interpreta o autor e não é inquestionável sua interpretação (assim como o próprio pensamento do autor clássico não é inquestionável). No caso de Marx o caso é mais grave, pois devido sua posição política, inúmeros antimarxistas ou conhecedores vulgares de sua obra tentam simplificar ao extremo sua concepção para facilitar a crítica e o descarte. As acusações fáceis de determinismo econômico, entre outras, apenas mostram desconhecimento da obra do autor e de sua complexidade (e de uma consciência mínima do que seja a dialética tanto hegeliana, fonte inspiradora, quanto a marxista). Autores que não são da sociologia e que escrevem manuais precários e recheados de afirmações sobre dezenas de autores não é nem preciso citar. Maria Lakatos e Paulo Dourado de Gusmão (este último chega a escrever que existe um “monismo econômico” em Marx, o que revela sua ignorância e não é apenas este autor que é vítima de tais “interpretações”). Alguns livros introdutórios apresentam uma síntese mais fidedigna aos clássicos (Viana, 2006), apesar de sua brevidade. Obviamente que existem comentaristas mais sérios, tais como Julien Freud, autor de A Sociologia de Max Weber ou Anthony Giddens, autor de As ideias de Durkheim. No caso de Marx, em idioma português, ainda falta uma obra que poderia ser considerada séria. Há o livro de Karl Korsch, mas em alemão, francês e espanhol, cujo título é Karl Marx. É fundamental usar a fonte, mesmo porque, é somente tendo acesso a ela que se pode concordar com as diversas e antagônicas interpretações de um determinado autor.

Outro equívoco que se deve evitar – e que é constante nos comentaristas – é a exposição do pensamento do autor de forma cronológica. Não é possível reconstituir a experiência intelectual do autor a partir da cronologia ou da sucessão de obras publicadas (ou produzidas, pois existem as obras póstumas). A cronologia é importante para entender a evolução intelectual do autor, como ele vai constituindo suas teses, conceitos e como desenvolve suas teorias, realiza alterações, aprofundamentos, etc., bem como a contextualização histórica[4]. Contudo, o ensino (assim como os livros de comentaristas) a partir da sucessão das obras mostra, no fundo, uma dificuldade de apreensão do que é fundamental no pensamento do autor e da totalidade do seu pensamento. Para superar isso, é fundamental que o ponto de partida da reconstituição da experiência intelectual do autor seja a partir das preocupações fundamentais dos mesmos para se chegar ao desenvolvimento de seu pensamento e concepção consolidada. Aqui não poderemos tratar disso, pois necessitaria de um enorme espaço para discutir as preocupações fundamentais de cada clássico da sociologia. Assim se preserva a unidade e totalidade do pensamento do autor ao invés de recortá-lo e tornar o indivíduo e sua consciência (manifesta em suas obras) uma colcha de retalhos incoerente e sem sentido. Não se pode entender Marx sem saber de sua preocupação fundamental, humanista e revolucionária, colocando-o como um cientista tal como Durkheim, por exemplo.

Assim, o ensino da sociologia clássica pressupõe uso das fontes e obras inteiras, reconstituição da experiência intelectual do autor a partir de suas preocupações fundamentais, percepção da evolução intelectual (sem cair no erro cronológico), não perder de vista a evolução intelectual do autor e a totalidade do seu pensamento, usar comentaristas mais qualificados e alertar de seu caráter questionável, entre outros aspectos. Dentre estes outros aspectos, que são muitos, mas não podemos abordar no presente texto, podemos citar os problemas das traduções. Cabe ao professor conhecer e indicar as melhores traduções, apontar erros de traduções mal feitas, etc. No caso de O Capital, de Marx, por exemplo, há apenas uma tradução confiável, que é o da editora Nova Cultural e a tradução dos Manuscritos Econômico-Filosóficos é em geral problemática, embora a da editora Boitempo seja a pior de todas por ter pressupostos equivocados no seu interior (que, inclusive, acaba substituindo trabalho alienado por “trabalho estranhado”, numa opção não apenas “estranha”, mas equivocada pelo sentido que fornece ao conceito de alienação ao substituir esta palavra por estranhamento). Da mesma forma, o conhecimento das fontes inspiradoras dos clássicos ajuda em sua compreensão, mas isto depende do tempo e grau de formação para que seja incluído no processo de ensino.

Essas breves indicações de como ensinar sociologia clássica é apenas um momento da formação do sociólogo ou cientista social. Uma vez que passe a ter um domínio mínimo dos clássicos da sociologia, ele fica apto a entender melhor os contemporâneos, que geralmente bebem na fonte dos clássicos (inclusive dos erros interpretativos de muitos deles) e para formar sua própria consciência sociológica, o que possibilita, inclusive, a crítica dos clássicos. Mas toda crítica pressupõe domínio e por isso a sociologia clássica é fundamental e pelo mesmo motivo todo sociólogo deve ter um conhecimento básico e mínimo das obras dos três clássicos da sociologia: Marx, Durkheim e Weber[5].



[1] “De um modo geral, os teorizadores são pensadores afoitos com um impulso irrefreável para desafiar e contestar ideias aceitas. (...). São, de um modo geral, extremamente inventivos, produzindo uma hipótese atrás de outra. Einstein explorou todos os domínios da Física, abrindo novos caminhos em mecânica, eletromagnetismo, teoria quântica, gravitação e no campo unificado. (...) A tendência dos teorizadores é para se comprometerem profundamente com suas ideias, defendendo-as muitas vezes com agressividade. (...). Mas, que promovam ou não suas ideias, os teorizadores têm usualmente grande confiança nelas, uma confiança que ajuda a resistir à oposição com que o pensamento original tão frequentemente se defronta” (Kneller, 1980, p. 156-157).

[2] Além destes, é possível citar o saber vulgar e o ritual. O saber vulgar é que apenas reproduz o saber já existente, composto por aqueles que se dedicam exclusivamente à atividade docente, o que alguns chamariam de “transmissão do saber”. Já o saber ritual, ou “desqualificado” (não-saber científico, filosófico ou teórico) é uma vulgarização ou simplificação de um pensamento complexo, que, nesse caso, se mescla com representações cotidianas. A sua existência é derivada de formação ritual, deficiente e geram representações mescladas, unindo aspectos do pensamento científico, filosófico, etc., com representações cotidianas, que são o que alguns denominam “senso comum” (Viana, 2008).

[3] Calvino apresenta um pensamento semelhante ao afirmar que “os clássicos são livros que exercem influência particular quando se impões como inesquecíveis e também quando se ocultam nas suas dobras de memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual” ou então quando afirma: “os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (Calvino, 2007, p. 10-11). Obviamente que as obras, autores, saberes clássicos, são clássicos por expressar necessidades sociais vivas, atuais, e ao mesmo tempo, devido este reconhecimento social, também são obras influentes, que inspiram novas obras, autores, saberes, como ações, costumes, etc.

[4] Um conhecimento profundo dos autores clássicos – o que se pode solicitar em pós-graduação ou em disciplinas optativas mais especializadas em graduação – requer a percepção da evolução intelectual do autor, pois muitas vezes se interpreta as primeiras obras como se as ideias já estivessem desenvolvidas como em suas ultimas obras, o que provoca equívocos interpretativos. A falta de contextualização histórica é outro problema: O Manifesto do Partido Comunista, por exemplo, não se refere aos partidos tal como conhecidos hoje, pois eles não existiam na época em que tal texto foi produzido e poucos se atentam para isso.

[5] Alguns tentam, superficialmente, criar “novos clássicos”, o que não resiste a uma análise crítica. Simmel e Parsons não são e nem poderiam ser clássicos, pois nem possuem um reconhecimento social suficiente, nem fundaram um saber original e permanente. Nesse caso temos apenas aberrações acadêmicas derivadas de interesses de tradutores e divulgadores de determinados autores.

 

Referências

ALEXANDER, Jeffrey. A Importância dos Clássicos. In: GIDDENS, Anthony e TURNER, Jonnathan (orgs.). Teoria Social Hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

COHN, Gabriel. Introdução. In: COHN, Gabriel (org.). Sociologia: Para Ler os Clássicos. Rio de Janeiro: LTC, 1977.

KNELLER, George F. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro/São Paulo, Zahar/Edusp, 1980.

VIANA, Nildo. Formação Intelectual, Representações Cotidianas e Pensamento Complexo. Educação & Mudança, v. 2, num. 09, 2010.

_____, Nildo. Introdução à Sociologia. 2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

_____, Nildo. Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas. Bauru: Edusc, 2008.


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 * Publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. Os Autores Clássicos da Sociologia no Ensino Superior. Contrapontos (Online), v. 13, p. 140-145, 2013.

https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rc/article/view/4247


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